Outra interpretação
Pedi ao ChatGPT que interpretasse livremente o texto Flor de Restinga, uma prosa poética. O resultado foi satisfatório, com uma interpretação assaz defensável a meu ver. Resolvi então pedir para que ele fornecesse duas interpretações possíveis ao seguinte haikai (de minha envergonhada autoria):
Terra estrumada
trigal em sonhos
entre eles, nada
Eis a resposta que a ferramenta me apresentou:
1. Interpretação agrária e cíclica
O poema pode representar o ciclo da agricultura. A "terra estrumada" sugere um solo fértil, pronto para receber sementes. O "trigal em sonhos" indica o desejo ou a expectativa de uma colheita futura. Porém, "entre eles, nada" pode simbolizar o intervalo de tempo entre o preparo do solo e o crescimento real das plantas – um período de espera e incerteza. Isso remete ao ritmo natural da vida, onde a paciência é necessária para que os frutos amadureçam.
2. Interpretação existencial e filosófica
O haikai pode ser lido como uma metáfora para as aspirações humanas. A "terra estrumada" representa o esforço e o preparo para algo significativo. O "trigal em sonhos" sugere esperanças, planos e ambições. No entanto, "entre eles, nada" pode indicar o vácuo entre o trabalho e a realização, um sentimento de incerteza ou até mesmo o vazio da existência. Essa interpretação reflete a frustração de quem investe esforço, mas ainda não vê os resultados concretos.
Ambas as leituras trazem uma reflexão sobre tempo, espera e o espaço entre a ação e a realização.
As interpretações dadas ao haikai pelo ChatGPT são de fato possíveis, mas ambas soam demasiadamente semelhantes (focam na incerteza e no vazio a que o poema supostamente remete) e um tanto superficiais a meu sentir (entendedores entenderão).
Buscando me aprofundar um pouco mais neste tema (interpretação de linguagem poética por inteligência artificial), pedi que a ferramenta apresentasse uma interpretação livre do poema Flor Experiente, de Drummond, uma vez que ele dialoga com o citado haikai:
Uma flor matizada
entreabre-se em meus dedos.
Já sou terra estrumada
— é um de meus segredos.
Careceu vida lenta
e, mais que lenta, peca,
para a cor que ornamenta
esta epiderme seca.
Assino-me no cálice
de estrias fraternais.
O pensamento cale-se.
É jardim, nada mais.
Eis o resultado oferecido pelo ChatGPT:
Este poema parece explorar temas de transformação, aceitação e conexão entre corpo e natureza. Aqui está uma interpretação livre:
Ciclo da Vida e da Morte
A "flor matizada" que se abre entre os dedos sugere beleza e renovação, mas também fragilidade e efemeridade. O eu lírico se reconhece como "terra estrumada", como se sua própria existência fosse solo fértil para novas vidas. Isso pode simbolizar tanto a experiência acumulada ao longo do tempo quanto a inevitabilidade do envelhecimento e da morte – um segredo íntimo, aceito com serenidade.
Tempo e Sofrimento na Construção da Beleza
O segundo verso sugere que a flor precisou de um tempo longo e sofrido para desabrochar, talvez uma metáfora para a própria jornada humana. A "cor que ornamenta" a pele seca pode representar marcas do tempo, cicatrizes ou lembranças, mostrando que a beleza não é apenas viço, mas também a história impressa no corpo.
Rendição ao Momento Presente
No último estrofe, o eu lírico se funde à flor e à terra. Assinar-se no cálice sugere uma entrega, um pertencimento ao ciclo natural das coisas. O pensamento se cala porque não há mais necessidade de explicação ou resistência: tudo é apenas "jardim, nada mais". Isso pode indicar uma aceitação plena da própria transitoriedade e do mistério da vida.
No geral, o poema traz uma visão contemplativa e quase mística sobre a passagem do tempo, a conexão entre corpo e natureza e a beleza que nasce da impermanência.
Pensei, de início, que a ferramenta buscaria nos repositórios online interpretações paradigmáticas (aquelas mais citadas), mas não parece ter sido esse o caso. Seja como for, estimulado a produzir uma interpretação livre, o ChatGPT, neste modesto experimento, apresentou um desempenho satisfatório quanto à interpretação da prosa poética, mas deixou a desejar no que tange a linguagens herméticas, revelando dificuldades em acessar alegorias de maior profundidade (abstratas). Mas suas leituras, ainda que rasas, são possíveis. Há um ponto positivo: a ferramenta coloca suas opiniões no condicional (pode, sugere), exatamente como deve ser em crítica literária. Observo que minha opinião é amadora e não substitui os interessantes estudos acadêmicos que certamente hão de surgir nesta seara.