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Pedro Lemos

Pedro Lemos

O triunfo da carência

O amor é o triunfo da carência. Não há, racionalmente, problema algum em viver consigo mesmo, mas poucos são os humanos (poetas em sua maioria) que enfrentam com proficiência uma existência solitária. Talvez porque certas pressões evolucionárias atuem em nosso inconsciente com o objetivo de estimular o contato social, relacionando virtudes que precisamos acumular e vontades que devemos abdicar a fim de consumar uma sociedade conjugal. Será mesmo possível que amor, saudade, afeto e carência deitem raízes em um único gene? Os primatas, humanos inclusive, são seres sociais: os solitários, neste contexto especulativo, integrariam uma exceção em que o aludido gene ou foi silenciado, ou teve baixa expressão. Vejamos um exemplo. Alguém me contou que, num futuro distante, mas não muito, a humanidade, cumprido um século de generalizada caquistocracia, sentirá falta de uma literatura autêntica: a produção massificada de histórias artificiais elevará a metáfora do palimpsesto a extremos insuportáveis, com a incorrigível autorreferência e a vocacionada intertextualidade dos promptautores a desencadear recorrentes episódios de déjà vu. Com leitores enjoados a abandonar os livros, a habilidade da leitura, e a própria capacidade cognitiva dos humanos, resultarão comprometidas. O problema é que, àquele tempo, não haverá mais originais à espera de publicação – terão todos sido inutilizados naquilo que chamar-se-á de grande revolução editorial - tampouco restarão escritores de qualidade, à exceção - descobrir-se-á - da ex-secretária de um Nobel de Literatura - o último antes do prêmio ser extinto - tendo ela mesma produzido uma reunião de poemas cuja publicação, obviamente, foi recusada. Uma comitiva encontrará tal poetisa em um sítio isolado: estará assaz idosa e a única companhia que possuirá consistirá dum humanoide configurado para ajudá-la nas tarefas cotidianas. Os comissionados a cercarão. Que ela publique seu livro. Que escreva romances instigantes, comoventes, aterrorizantes. Que ensine jovens escritores. Cumprirá a si a missão de salvar a literatura mundial e, consequentemente, a humanidade inteira. Serão muitos os apelos, sinceros, genuínos, sentidos, mas a velhinha, com as devidas vênias, a todos recusará: "Deixei pelo caminho as paixões da juventude. O único amor que cultivo é o amor próprio, um amor que, como bem sabem, é impossível dividir-se com outra pessoa, que dirá com toda a humanidade". Assim dar-se-á o fim da literatura.

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