Faca
O ano era 2010. Bem acomodado na plateia da tenda principal da Festa Literária Internacional de Paraty, assistia eu à entrevista de Salman Rushdie, que, àqueles dias, encontrava-se em turnê mundial à promoção de seu romance Luka e o Fogo da Vida. Não havia, aparentemente, maiores preocupações em relação à sua segurança: Salman demonstrava estar à vontade entre os seus, tanto que, finda a sessão e acompanhado de seu filho Milan, atendeu à uma longa fila de autógrafos. Quem o visse circular por Paraty, desfrutando das belas paisagens e recebendo intermináveis saudações, jamais imaginaria o drama que haveria de enfrentar doze anos depois. O panorama é assaz conhecido: em 12 de agosto de 2022, no anfiteatro do Instituto Chautauqua (NY), um jovem americano, filho de pai libanês, esfaqueou Salman Rushdie diversas vezes. Tratar-se-ia, a princípio, dum eco anacrônico da fatwa decretada por um conhecido terrorista islâmico, hoje falecido. Salman sobreviveu à agressão, felizmente; e sendo ele um escritor, nada mais natural que buscasse expiar o trauma através de um livro. Em Faca (2024), temos um relato direto, em primeira pessoa, da violência a que o autor foi submetido, do contexto que a antecedeu e das provações que suportou durante sua recuperação. A narrativa intimista nos convida a abandonar a visão jornalística dos fatos, distanciada, confortável, para nos tornarmos testemunhas presenciais do drama. Sobressai dessa aproximação um resumo, bem documentado por Salman e sua esposa, do sistema hospitalar americano, notadamente de seu atendimento de emergência: a realidade das enfermarias, a dificuldade dos diagnósticos, o drama dos tratamentos, a burocracia financeira, a complexidade da reabilitação. Seguimos o autor em sua extenuante maratona de procedimentos médicos necessários ao seu restabelecimento, assim como em seu esforço para manter a sanidade mental durante o período de internação, isso tudo com boas pitadas, vejam só, de humor. Mas Faca vai além do binômio trauma-superação. Salman busca intelectualizar o evento, agregando ao processo, possivelmente por cacoete, um pouco de realismo mágico (“Sua mão passa através do espelho e aí o restante de seu corpo passa também”). O resultado é um show de erudição e cultura universal (até Machado de Assis é citado, e pensando bem, por que não?), além de insights sagazes como o paradoxo do milagre (ele, que não acredita em milagres, vê-se obrigado a tomar sua sobrevivência como algo miraculoso), o paradoxo político (ele, um militante pela liberdade de expressão, ser obrigado a testemunhar a apropriação desse conceito por grupos extremistas) e o paradoxo espacial (ele, que enfrentou a morte num condado bucólico, reencontrou a paz numa metrópole violenta). O capítulo mais impactante do livro talvez seja aquele que encerra o diálogo fictício entre Salman e seu agressor: através dessa conversa inventada, conhecemos um pouco da história do criminoso e das frustrações que estariam, supostamente, na raiz de sua radicalização. Salman não nos oferece conclusão alguma acerca de seu algoz: pode tratar-se dum sujeito acometido de uma forte idiotia, patológica ou auto-infligida (dessas assaz apreciadas por gurus, déspotas e manipuladores em geral), ou de um criminoso comum, interessado na fama ou nas recompensas prometidas àquele que cumprisse a fatwa (“Ou pensou que conseguiria escapar e viver como fugitivo?”). O fato é que tal indivíduo materializa algo ruim, e não apenas do ponto de vista pessoal, mas, igualmente, social (“Se transformam você em um objeto de ódio, haverá pessoas que te odeiam”). Do diálogo é possível extrair também uma espécie de roteiro intelectual visando alertar indivíduos susceptíveis à radicalização ideológica: Salman apela a clássicos do cinema, da literatura e da filosofia na (vã) tentativa de firmar contrapontos a dogmas que, embora vencidos e flagrantemente contraditórios, vingam sequestrar a mente de uma legião de jovens. Seria possível, neste contexto, tomar Faca como um libelo em defesa do livre pensamento. É por demais cansativo repetir o óbvio, mas as evidências demonstram que o esforço atual tem sido insuficiente: abdicar do livre pensamento significa regredir a tempos medievais, tempos estes em que o acesso ao conhecimento era limitado a uma parcela minúscula da população, e o questionamento a dogmas, severamente punido. Nossa prosperidade como espécie depende de nosso diferencial evolutivo, o pensamento, e como pensamos através de palavras, a condenação de um romancista à morte representa um autoflagelo. Como o próprio ataque a Salman demonstrou, não basta simplesmente defender o livre pensamento: é preciso assegurá-lo, estimulá-lo mesmo. Tudo o que um tirano almeja é uma população de não pensantes. Deixando para trás o prontuário médico, a resiliência e resistência do autor, sua escrita direta (diferente de seus romances), sua cultura invejável, seus apontamentos filosóficos (“Direi apenas que não seríamos quem somos hoje sem as calamidades de nossos ontens”), o libelo em defesa do livre pensamento, enfim, toda a reflexão relacionada ao ato de violência, Faca é, mais do que tudo, um livro sobre o amor. Salman ingressara na terceira idade aceitando um ocaso solitário, e com pesar acompanhava as maiores mentes de sua geração partirem uma a uma, quando então reencontrou o amor: apaixonou-se por uma poetisa e foi por ela correspondido. Casaram-se. Viajaram à Itália em lua-de-mel. Vivenciava ele, enfim, sua plenitude: a carreira ia bem, a saúde ia bem, o coração ia bem. A obra de sua vida ganhara uma bela restauração. Eis que veio o ataque. Do qual emergiram personagens que Salman sempre preferiu manter discretos: sua família, seus amigos e, especialmente, sua esposa, Rachel Eliza Griffiths. Ao mesmo tempo em que narra seu tormento e elabora sua percepção dos fatos, Salman ressalta a corrente de amor que o cercou durante todo o período: os estímulos encorajadores de médicos, enfermeiros e terapeutas; as mensagens carinhosas de amigos e fãs; o abraço reconfortante de seus familiares; a dedicação inabalável de sua esposa. Por mais paradoxal que soe (e isso numa obra em si repleta de paradoxos), o amor perpassa todos os capítulos do livro, e dele resultam passagens tão bonitas que beiram à pieguice (“Nosso amor não precisa de expressão sentimental para existir”). Facas também talham corações em troncos maltratados. Passaram-se pouco mais de dois anos desde que Salman Rushdie foi atacado no anfiteatro do Instituto Chautauqua. Seu agressor enfrenta acusações por terrorismo e tentativa de homicídio, e corre o sério risco de passar o resto de sua vida na cadeia. O escritor, por sua vez, continua vivo, recupera-se a contento, sente-se amado e acolhido. E, para nossa sorte, mantém sua escrita assaz afiada.