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Pedro Lemos

Pedro Lemos

Arroubos da indiferença

Eis uma frase famosa atribuída a Elie Wiesel: "O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença". Recorro a ela para ilustrar minha fase atual. Pois tenho andado indiferente a tudo. Bem que eu gostaria de ver-me apaixonado, ou ao menos entusiasmado em fazer algo, mas há um tempero mental, uma mistura de tédio e esgotamento com pitadas de fastio e nojo, que me gera uma gastura quase incapacitante. Resisto como posso. Procuro caprichar nas caminhadas em busca de efeitos peripatéticos, confiro as atrações no cinema, vasculho títulos nos streamings, mas nada me desperta volúpias. Os livros dão-me algum consolo: escrever sobre eles é o que me resta e tentarei fazê-lo a seguir. Tornar-me-ei um Dom Mofino? Sei lá. Minha indiferença vale ao futuro também. Mas tal leseira não me impediu de ir ao teatro assistir “Dois de nós”, peça de Gustavo Pinheiro com Antônio Fagundes, Cristiane Torloni, Thiago Fragoso e Alexandra Martins. O texto é ótimo, daqueles que nos impõem tarefas tão exaustivas quanto necessárias: refletir sobre o passado, imaginar o futuro, pensar na vida. Foi divertido, uma generosa intercorrência que tornou menos áspera a romaria por essa estrada pedregosa. Também tenho lido com gosto vossos blogues. Dia desses um colega afirmou que a Igreja Católica “seria hoje a única instituição com verdadeira presença global”. Trata-se, a toda evidência, dum ufanismo cristão. Basta ver que em boa parte do Oriente a figura de Jesus Cristo ou é desconhecida, ou é indiferente. Considerando a Índia, a China e o Japão, o cristianismo não há de abarcar 3% da população, e a influência do papa, em tais regiões, é diminuta. Claro que por lá há igrejas, como também as há em cantos remotos da região Amazônica, mas daí tomar tal presença como relevante, e mais ainda, positiva, é uma questão controvertida. Do meu ponto de vista, a única instituição com presença global é a Fifa, com o culto ao futebol a pregar princípios de equidade e justiça que muitos povos não encontram fora dos estádios. Penso que, sob o viés eminentemente filosófico, as religiões - a maioria delas, ao menos - manipulam dois produtos básicos: o medo da morte e a esperança na vida eterna. O lucro do comércio de tais produtos é revertido à luta narcisista pelo poder, uma luta que, não raras vezes, é indiferente aos direitos humanos, e o mais ultrajante, vem travestida de assistencialismo clientelista. Okay, escrevi demais sobre um tema inflamante. Desculpem-me. A promessa aqui é ser indiferente. Concluo minha arenga referenciando a frase que resume a humildade dos filósofos helênicos: "Sou grato à fortuna por três coisas: ter nascido homem e não mulher; ter nascido grego e não bárbaro; ter nascido livre e não escravo". Não se sabe exatamente qual daqueles famosos gregos escreveu essa máxima, mas me parece razoável acreditar que todos eles a aceitavam como verdade. Refletir sobre privilégios de nascença é, pois, algo antigo. Creio ser justo sopesarmos certos privilégios de nascença quando da promoção de políticas públicas: o que importa, afinal, em termos de equidade, é a igualdade real, aquela a se manifestar nas ruas, e não a igualdade formal, aquela “perante a lei”. A melhor forma de balancear tais privilégios, mas não a única, é oferecer educação de qualidade a todos, e isso a partir de impostos progressivos (tributos focados em educação são a melhor forma de promover a distribuição de renda). Pessoas bem educadas fazem toda a diferença, ainda que uma ou outra acabe tragada pela indiferença.

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