O vivente chega aos cinquenta anos e se vê compelido a observar uma série de procedimentos a fim de assegurar alguns anos a mais de vida neste espaço-tempo. Começamos com as consultas anuais ao clínico geral, ao urologista, ao oftalmologista e ao dentista; seguem-se então os exames: sangue e urina (a fim de saber se os órgãos internos estão a funcionar adequadamente), ultrassom das carótidas e do abdome, cintilografia cardíaca, raio-x dentário e fundoscopia; e por fim, os medicamentos: antidepressivos, ansiolíticos, comprimidos para combater o ácido úrico, o colesterol e a glicose, compostos para suprir a carência de vitamina D e B12, ampolas para reposição hormonal e, claro, vacinas. Muitas vacinas. Isso só para fins preventivos: notável é a sagacidade do acaso em acrescentar dramas ao nosso prontuário médico. Há que se ter paciência, disciplina e, sobretudo, dinheiro, um tripé difícil de reunir no tumulto do dia-a-dia. Sou a favor de que, além das férias anuais, a legislação franqueie a todo cidadão com mais de quarenta anos alguns dias por ano dedicados a exames preventivos. Soube que a Alemanha teria um projeto neste sentido. Acredito que esse avanço civilizacional acabaria por reduzir os afastamentos para tratamento de saúde e aliviaria a pressão orçamentária dos sistemas sanitários nacionais. Seja como for, esse pitaco deve ser avaliado em conjunto com uma dúvida existencial e, infelizmente, oportuna: ainda vale a pena investir nesse mundo?
Cumprindo o dever anual com a prevenção ao câncer de próstata, fui dia desses ao urologista e acabei por descobrir, inadvertidamente, que ele enfrentava momentos desafiadores em sua vida. Protegido pela luva descartável parcialmente lambuzada de gel, o médico iniciou o exame como de costume, embora tivesse de fato o ar distante; quando eu acreditava que a missão estivesse no fim, eis que o expert pôs-se a desabafar, falar de dramas que muitas vezes regrediam à sua infância, coisas que reservamos, via de regra, aos nossos terapeutas da mente; e eu ali, deitado na maca, pernas abertas, focado naquilo que, do meu ponto de vista, era realmente essencial. Iam já vinte minutos nessa sessão psicológica quando ele então desabou a chorar, deixando a situação ainda mais constrangedora; e percebendo sua intenção de enxugar as lágrimas que escorriam abundantemente em sua face, achei por bem intervir: “Com a outra mão! Com a outra mão!” Desse dia em diante minha vida só piorou, mas deixarei os detalhes para mais tarde. Há que se dar um passo de cada vez, não é mesmo?
Pedi ao ChatGPT que interpretasse livremente o texto Flor de Restinga, uma prosa poética. O resultado foi satisfatório, com uma interpretação assaz defensável a meu ver. Resolvi então pedir para que ele fornecesse duas interpretações possíveis ao seguinte haikai (de minha envergonhada autoria):
Terra estrumada trigal em sonhos entre eles, nada
Eis a resposta que a ferramenta me apresentou:
1. Interpretação agrária e cíclica
O poema pode representar o ciclo da agricultura. A "terra estrumada" sugere um solo fértil, pronto para receber sementes. O "trigal em sonhos" indica o desejo ou a expectativa de uma colheita futura. Porém, "entre eles, nada" pode simbolizar o intervalo de tempo entre o preparo do solo e o crescimento real das plantas – um período de espera e incerteza. Isso remete ao ritmo natural da vida, onde a paciência é necessária para que os frutos amadureçam.
2. Interpretação existencial e filosófica
O haikai pode ser lido como uma metáfora para as aspirações humanas. A "terra estrumada" representa o esforço e o preparo para algo significativo. O "trigal em sonhos" sugere esperanças, planos e ambições. No entanto, "entre eles, nada" pode indicar o vácuo entre o trabalho e a realização, um sentimento de incerteza ou até mesmo o vazio da existência. Essa interpretação reflete a frustração de quem investe esforço, mas ainda não vê os resultados concretos.
Ambas as leituras trazem uma reflexão sobre tempo, espera e o espaço entre a ação e a realização.
As interpretações dadas ao haikai pelo ChatGPT são de fato possíveis, mas ambas soam demasiadamente semelhantes (focam na incerteza e no vazio a que o poema supostamente remete) e um tanto superficiais a meu sentir (entendedores entenderão).
Buscando me aprofundar um pouco mais neste tema (interpretação de linguagem poética por inteligência artificial), pedi que a ferramenta apresentasse uma interpretação livre do poema Flor Experiente, de Drummond, uma vez que ele dialoga com o citado haikai:
Uma flor matizada entreabre-se em meus dedos. Já sou terra estrumada — é um de meus segredos.
Careceu vida lenta e, mais que lenta, peca, para a cor que ornamenta esta epiderme seca.
Assino-me no cálice de estrias fraternais. O pensamento cale-se. É jardim, nada mais.
Eis o resultado oferecido pelo ChatGPT:
Este poema parece explorar temas de transformação, aceitação e conexão entre corpo e natureza. Aqui está uma interpretação livre:
Ciclo da Vida e da Morte
A "flor matizada" que se abre entre os dedos sugere beleza e renovação, mas também fragilidade e efemeridade. O eu lírico se reconhece como "terra estrumada", como se sua própria existência fosse solo fértil para novas vidas. Isso pode simbolizar tanto a experiência acumulada ao longo do tempo quanto a inevitabilidade do envelhecimento e da morte – um segredo íntimo, aceito com serenidade.
Tempo e Sofrimento na Construção da Beleza
O segundo verso sugere que a flor precisou de um tempo longo e sofrido para desabrochar, talvez uma metáfora para a própria jornada humana. A "cor que ornamenta" a pele seca pode representar marcas do tempo, cicatrizes ou lembranças, mostrando que a beleza não é apenas viço, mas também a história impressa no corpo.
Rendição ao Momento Presente
No último estrofe, o eu lírico se funde à flor e à terra. Assinar-se no cálice sugere uma entrega, um pertencimento ao ciclo natural das coisas. O pensamento se cala porque não há mais necessidade de explicação ou resistência: tudo é apenas "jardim, nada mais". Isso pode indicar uma aceitação plena da própria transitoriedade e do mistério da vida.
No geral, o poema traz uma visão contemplativa e quase mística sobre a passagem do tempo, a conexão entre corpo e natureza e a beleza que nasce da impermanência.
Pensei, de início, que a ferramenta buscaria nos repositórios online interpretações paradigmáticas (aquelas mais citadas), mas não parece ter sido esse o caso. Seja como for, estimulado a produzir uma interpretação livre, o ChatGPT, neste modesto experimento, apresentou um desempenho satisfatório quanto à interpretação da prosa poética, mas deixou a desejar no que tange a linguagens herméticas, revelando dificuldades em acessar alegorias de maior profundidade (abstratas). Mas suas leituras, ainda que rasas, são possíveis. Há um ponto positivo: a ferramenta coloca suas opiniões no condicional (pode, sugere), exatamente como deve ser em crítica literária. Observo que minha opinião é amadora e não substitui os interessantes estudos acadêmicos que certamente hão de surgir nesta seara.
Pedi ao ChatGPT que interpretasse livremente (sem abordagens) o texto Flor de Restinga. Eis o resultado:
O texto apresenta uma carga poética intensa, cheia de simbolismos e imagens sensoriais que remetem a um amor perdido, efêmero ou inalcançável. A "restinga viva e florida" parece simbolizar a resistência da natureza diante da passagem humana, permanecendo imaculada e eterna, em contraste com a transitoriedade das experiências humanas, especialmente das relações e emoções.
O eu lírico se dirige a alguém que compartilhou momentos intensos ao seu lado, entre "lágrimas de vento e beijos salgados", sugerindo um encontro marcado por paixão e melancolia. Há uma sugestão de afinidade e semelhança entre os dois—"Usas o dialeto da minha terra, apreciamos coquetéis de igual teor, somos tarjas da mesma cor"—mas, ainda assim, algo os separou.
A "dramática explosão do superego" que venceu sua "força gravitacional" pode ser interpretada como um conflito interno, um embate entre desejo e razão, que acabou por afastá-los. O eu lírico lamenta não ser melhor do que aquilo que foi experimentado na noite de entrega, nem mais do que um "artesão de dunas", imagem que remete à efemeridade, àquilo que o vento desfaz sem deixar vestígios.
Por fim, resigna-se ao distanciamento da amada, desejando que ela se deslumbre com a imensidão do universo enquanto ele permanece preso à terra, tentando capturar o brilho dela, ainda que ofuscado pela rotina e pelo desgaste do cotidiano. O tom é de saudade, aceitação e, ao mesmo tempo, uma esperança silenciosa de reencontro ou de lembrança.
Então lá estava ele, esparramado, lençóis egípcios engomados, cama king size, chalé à beira-mar, a admirar a moça deitada na areia, uma jovem cujos seios espetavam estrelas no indefectível tecido cósmico. Quem, como você, curioso leitor, invadir a história neste exato momento, sentir-se-á compelido a pensar “eis um homem que venceu na vida”, mas alto lá! Poucos são os revezes de uma existência aptos a encontrar redenção num paraíso qualquer. Sim, tal felizardo reconhecia seus privilégios, o exotismo daqueles dias, o aroma daquela pele fresca que invadia a alcova agarrado à maresia noturna, a cadência ansiolítica das ondas, a efêmera languidez do hedonismo, mas isso apenas porque os contrastes em sua memória lhe franqueavam uma visão depurada da realidade, uma realidade que, àquele momento, inspirava-lhe um raro sentimento de gratidão. Pois a jovem à sua frente, sua namorada, era uma estudante de medicina que, muito além da carne apetecível que caridosamente lhe oferecia, teve a bondade de atualizá-lo nas formas de amar e ser amado, e o fez com eficiência científica. O amor evolui tão rápido quanto a medicina, dizia ela. Não há conversas mágicas, bem sabemos, mas os protocolos terapêuticos ministrados pela mocinha lhe resultaram deveras convincentes. Sentia-se curado. Saciado. O que mais haveria de querer? Tomou de impulso o telefone que descansava à mesa de cabeceira. Conferiu novamente as mensagens, ampliou a imagem do avatar. Aquela viúva espremida na fotografia, que buscava saber como ele tem passado, se estaria com alguém e coisa e tal, fôra o grande amor de sua juventude, um amor que, deveria reconhecer, ecoava até hoje. Quiçá não fosse mais amor e sim saudade de amar daquela maneira intensa, delirante e inconsequente com a qual a amara. Fechou os olhos. Vieram-lhe à lembrança os tempos das grandes descobertas, o calor dos corpos tímidos a acompanhar a música lenta, o perfume floral de debutante, o beijo sabor Coca-Cola. Felicidade é uma festa adolescente com beijo no final. Devolveu enfim o telefone à mesinha, cuidando para não derrubar a cartela de pílulas azuis e a garrafinha de água gaseificada. Notou em seguida que sua namoradinha estava agora de bruços, nua ainda, e generosa como sempre. Que decisão haveria de tomar? Tanto nos resta a dizer quanto lhe resta a pensar.
O amor é o triunfo da carência. Não há, racionalmente, problema algum em viver consigo mesmo, mas poucos são os humanos (poetas em sua maioria) que enfrentam com proficiência uma existência solitária. Talvez porque certas pressões evolucionárias atuem em nosso inconsciente com o objetivo de estimular o contato social, relacionando virtudes que precisamos acumular e vontades que devemos abdicar a fim de consumar uma sociedade conjugal. Será mesmo possível que amor, saudade, afeto e carência deitem raízes em um único gene? Os primatas, humanos inclusive, são seres sociais: os solitários, neste contexto especulativo, integrariam uma exceção em que o aludido gene ou foi silenciado, ou teve baixa expressão. Vejamos um exemplo. Alguém me contou que, num futuro distante, mas não muito, a humanidade, cumprido um século de generalizada caquistocracia, sentirá falta de uma literatura autêntica: a produção massificada de histórias artificiais elevará a metáfora do palimpsesto a extremos insuportáveis, com a incorrigível autorreferência e a vocacionada intertextualidade dos promptautores a desencadear recorrentes episódios de déjà vu. Com leitores enjoados a abandonar os livros, a habilidade da leitura, e a própria capacidade cognitiva dos humanos, resultarão comprometidas. O problema é que, àquele tempo, não haverá mais originais à espera de publicação – terão todos sido inutilizados naquilo que chamar-se-á de grande revolução editorial - tampouco restarão escritores de qualidade, à exceção - descobrir-se-á - da ex-secretária de um Nobel de Literatura - o último antes do prêmio ser extinto - tendo ela mesma produzido uma reunião de poemas cuja publicação, obviamente, foi recusada. Uma comitiva encontrará tal poetisa em um sítio isolado: estará assaz idosa e a única companhia que possuirá consistirá dum humanoide configurado para ajudá-la nas tarefas cotidianas. Os comissionados a cercarão. Que ela publique seu livro. Que escreva romances instigantes, comoventes, aterrorizantes. Que ensine jovens escritores. Cumprirá a si a missão de salvar a literatura mundial e, consequentemente, a humanidade inteira. Serão muitos os apelos, sinceros, genuínos, sentidos, mas a velhinha, com as devidas vênias, a todos recusará: "Deixei pelo caminho as paixões da juventude. O único amor que cultivo é o amor próprio, um amor que, como bem sabem, é impossível dividir-se com outra pessoa, que dirá com toda a humanidade". Assim dar-se-á o fim da literatura.
Confiro ao longe nossa restinga viva e florida, implacável frente ao peso dos corpos, indiferente à sensualidade das palavras, imaculada, ainda que dos humanos tão próxima, e àqueles que sobre ela perderam a noção do tempo, eterna. Oxalá eu fosse melhor do que aquilo que provaste no desvario da noite, enquanto decifrávamos constelações entre lágrimas de vento e beijos salgados. Usas o dialeto da minha terra, apreciamos coquetéis de igual teor, somos tarjas da mesma cor. Que fim levaríamos não tivesse a dramática explosão do superego vencido nossa força gravitacional? Quem dera eu fosse melhor do que isto que ignoras longínqua no espaço-tempo: um artesão de dunas. Cumpre enfim tua sentença: deslumbre a Via Láctea! Seguirei caçando teu brilho com olhos desfocados pela infame sujidade do dia a dia.